sexta-feira, 22 de abril de 2011





Bernardino Machado e a Lei da Separação do Estado das Igrejas




Do jornal "O Mundo", ano11, nº 3814, de 12 de Junho de 1912, p


Com um apertado abraço de gratidão para o Dr. Amadeu Gonçalves


"Uma linda e interessante festa realizou ontem a Academia de Estudos Livres a comemorar o aniversário da escola Marquês de Pombal. Entre os números do programa compreendia-se uma sessão solene, que se efectuou no vasto terreno da Escola, apenas adornado com as próprias flores, árvores e plantas trepadeiras a revestirem os muros, pelos sorrisos das senhoras e pelos encantos das crianças. O ilustre ministro dos estrangeiros, que honra a Academia com a sua alta presidência, como honrou a sua fundação, deu entrada no recinto às 2 horas e meia da tarde, sendo recebido entre delirantes ovações da enorme assistência. A orquestra dos alunos do Asilo-Escola António Feliciano de Castilho, tocou a Portuguesa. Foi indescritível então o entusiasmo da multidão, ainda recrudescido à entrada das crianças da Escola, com o seu pendão e a Bandeira Nacional desfraldada. / Feito silêncio, e formada rigorosamente a Escola, com a frente para a presidência, avançou o pequenito portador da bandeira nacional e logo uma encantadora menina, Maria Cândida Botelho, começou recitando um comovente trecho de saudação ao estandarte da Pátria. A saudação, inspirada num formosíssimo trecho de Coelho Neto, verdadeiramente empolgante e digna de ser vulgarizada nas escolas, foi dita brilhantemente, fazendo vibrar da mais profunda emoção todas as pessoas presentes.

FALA O SR. DR. BERNARDINO MACHADO

Deve cultivar-se delicadamente na alma da criança o amor pela liberdade

Foi ainda sob a impressão emotiva da saudação à bandeira que o eminente estadista sr. dr. Bernardino Machado se ergueu para falar. Começou o ilustre ministro por dizer que naquela mesma tarde outras festas se celebravam, que muito atraíam o seu coração, e a que por isso muito lhe custava falar, mas que ainda a honra que tinha de ainda presidir à Academia dos Estudos Livres, da qual fora um dos fundadores, lhe impunha o dever de lhe dar a sua preferência. E indo ali para comemorar o aniversário da Escola Marquês de Pombal, mantida por aquela benemérita instituição que tanto contribuiu nos últimos tempos para a elevação moral e cívica da população de Lisboa, não podia deixar, antes de mais nada, de saudar os seus devotadíssimos dirigentes.
Cumprimentara-a pelo êxito admirável da sua campanha educativa. Como essa campanha era difícil, antes do 5 de Outubro, quando tínhamos contra nós a influência anti-educativa das instituições monárquicas que pesaram opressivamente sobre o espírito público, reprimindo e contendo o livre desenvolvimento das faculdades individuais! Hoje, olhando para aquelas crianças, para o seu garbo, para a altivez airosa com que uma delas empunha a bandeira vermelha e verde da Pátria, vê-se que estão ali filhos de homens livres, orgulhosos de si, do seu nome de portugueses. E se há sentimento que se deva cultivar delicadamente na alma da criança é o amor pela liberdade.

A Lei da Separação não é hostil a ninguém; antes pacífica todas as paixões religiosas

A família e a pátria – prossegue o sr. dr. Bernardino Machado – são-nos caras porque é, sobretudo, dentro delas que nos sentimos mais livres. Ainda ontem, na consagração a Camões, ele, orador, proclamou a identificação entre a pátria e as instituições liberais, que não podem já hoje ser em Portugal, outras que não sejam as instituições republicanas. Mas dentro da suprema religião da Liberdade, dentro da religião da Pátria e da Família todas as crianças são lícitas e respeitáveis. Tal é o significado do princípio da liberdade de cultos, consignado na lei da separação das Igrejas e do Estado. Esta lei não é de hostilidade a ninguém, mas, pelo contrário, a pacificação de todas as paixões religiosas que não devem nunca egoistamente romper pela sua violência os laços afectivos da solidariedade humana. E a prova do nosso respeito pelas associações religiosas está na adopção que fizemos das confrarias, irmandades e misericórdias, que são as nossas históricas instituições católicas, para associações cultuais das paróquias. O que não quisemos foram as congregações clericais que pretendem ter direito à vida e constituir-se em nome de uma falsa liberdade religiosa que não é senão a abdicação dessa própria liberdade. Misericórdias, irmandades, confrarias, que são sociedades de livre eleição, quantas quiserem, mas conventos com clausura e voto que são instrumentos despóticos de opressão das almas, isso nunca mais em Portugal. / E é para evitar que a religião se possa transformar numa obra corruptora de despotismo e de opressão que a mesma lei de separação das Igrejas do Estado consigna, juntamente com o princípio da liberdade de crenças e de cultos, que nós levamos o mais longe possível, até à justa tolerância do poder civil sobre todas as confissões religiosas, o que vale o mesmo que dizer que acima de todas está a religião humana e patriótica dos deveres morais e cívicos, a que se deve primacialmente prestar culto. É a soberania do poder civil tem mesmo também por fim assegurar os direitos dos crentes, perante o clero, e dentro destes os direitos do baixo clero perante os seus prelados. Por isso a lei da separação das Igrejas do Estado, além de ser uma lei de liberdade de crenças é, ao mesmo tempo, uma lei de assistência moral e material de corporações religiosas. / Eis o que se vai por toda a parte reconhecendo e o que faz com que, se todos estamos prontos e aceites os alvitres, que, mantendo invioláveis os princípios fundamentais em que essa lei assenta, a tornem porventura mais perfeita nos seus pormenores e de mais fácil aplicação, estamos todos também resolvidos a reagir energicamente contra o sectarismo ultramontano dos que intentam disfarçar na sua guerra contra ela o seu ódio inveterado à liberdade.

Venham de que lado vierem, o governo há-de vencer todos os seus inimigos

Sempre vibrantemente aplaudido, o sr. dr. Bernardino Machado continua: o governo há-de vencer os seus inimigos, venham de que lado vierem. Nenhuns teme. Ele tem por si a força que lhe dá a consciência de que está desempenhando uma missão histórica absolutamente indispensável à vida da nossa nacionalidade e tem por si a acompanhá-lo inquebrantavelmente a força da opinião pública que ainda ontem entusiasticamente o aclamava nas ruas de Lisboa. E o governo ufana-se desta solidariedade nacional porque se ele tem feito tudo por demonstrar a firmeza dos seus princípios republicanos, tem também feito sempre por demonstrar que o valor dos seus princípios provêm, precisamente, do poder supremo de confraternização que desde o 5 de Outubro nos anima e nos trás como que incessantemente em festa, dando à nossa vida emocional uma sensação enternecida como ela nunca teve. Ali mesmo, na intimidade daquela festa, todos se sentiam decerto como ele, comovidos na doce esperança que aquelas crianças em crescendo, haviam de ganhar forças para cada vez melhor empenharem e defenderam a bandeira gloriosa da Pátria e da República, em volta da qual a Academia de Estudos Livres ali tão educativamente se regimentava."


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