terça-feira, 23 de agosto de 2011




Reproduzimos do blogue do Dr. Amadeu Gonçalves -
literatura&filosofia -
http://litfil.blogspot.com/2011/08/100-anos-constituicao-da-republica.html#links

"Os livros são as melhores provisões que encontrei para esta humana viagem." (Montaigne)
Domingo, 21 de Agosto de 2011

100 anos constituição da república

Hoje comemoram-se os 100 anos da Constituição da República em Portugal. Encontrava-se dividida em sete títulos, conforme assim designaram os respectivos capítulos. estavam assim estabelecidos: TI) Da Forma do Governo e do Território da Nação Portuguesa; TII) Dos Direitos e Garantias Individuais; TIII) Da Soberania e dos Poderes do Estado. Este Título III encontrava-se subdividido em três secções: SI) Do Poder Legislativo; Do Senado; Das Atribuições do Congresso da República; Da Iniciativa, Formação e Promulgação das Leis e Resoluções; SII) Do Poder Executivo; Da Eleição do Presidente da República; Das Atribuições do Presidente da República; Dos Ministros; Dos Crimes de Responsabilidade; SIII) Do Poder Judicial; TIV) Das Instituições Locais Administrativas; TV) Da Administração das Províncias Ultramarinas; TVI) Disposições Gerais; TVII) Da Revisão Constitucional e, finalmente, Disposições Transitórias. O Presidente da Assembleia Nacional Constituinte era Anselmo Braaancamp Freire. Transcrevemos uma entrevista de Bernardino Machado então concedida ao jornal "O Mundo" e publicada em 20 de Julho de 1911, sendo o assunto em foco a Constituição da República. Antes, Bernardino Machado tinha concedido uma outra sobre a mesma temática, precisamente em 11 de Maio de 1911.
O Sr. Dr. Bernardino Machado, pelos seus vastos conhecimentos de direito público e pelas suas incontestáveis capacidades de estadista, estava naturalmente indicado para dar-nos a sua opinião acerca do futuro código político por que há-de fundamentalmente dirigir-se a República Portuguesa. O parecer do ilustre homem público seria deveras interessante e, neste momento, pela sua situação especial, de um grande alcance político. O Sr. Dr. Bernardino Machado, como todos sabem, é um republicano que, como ministro, com dedicação e inteligência raras tem defendido a segurança da República e o prestígio do País. A sua opinião, pois, revestiria um carácter de exclusivo patriotismo. Por isso, procurámo-lo nos Passos Perdidos, mas o eminente ministro da República, sempre affairê, e, ao mesmo tempo, não querendo abandonar a discussão parlamentar por interesse público e por gentileza com os oradores, era difícil de deter durante os minutos indispensáveis para ouvi-lo sobre o assunto. Conseguimos, porém, no Ministério dos Negócios Estrangeiros obter de S. Ex.ª uma meia hora de palestra. Principiamos logo por esta pergunta, a mais indiscreta de todas:
- Que me diz V. Ex.ª da discussão parlamentar acerca do projecto da Constituição?
- Que tem sido elevada e consciente, confirmando os dotes parlamentares de uns oradores, e revelando brilhantemente os de outros, que se estrearam agora. A Constituinte está decidida, segundo me parece, a aceitar do projecto as duas câmaras e a presidência, mas desejando que os ministérios tenham voz no Parlamento e que haja um poder judicial independente. Pela minha parte, não julguei necessário, como ministro, intervir na discussão; mas como deputado e cidadão, é claro que não tenho dúvida alguma em expor a minha opinião.
- V. Ex.ª entende que no nosso País existem sentimento e tradição parlamentares?
O Sr. Dr. Bernardino Machado confia mansamente o bigode branco e farto, e acaricia com a palma da mão direita a testa alta e larga, e diz:
- Sem dúvida!
E, depois de uns segundos de silêncio, acrescenta e explica:
- Com a Revolução de 5 de Outubro, o povo português afirmou, mais uma vez, vitoriosamente o direito de se governar por si. O regime republicano, desde a sua proclamação, não existe só de facto, mas também de direito. Por isso, quando os governos estrangeiros pensaram em entrar em relações connosco, eu não podia aceitar nem aceitei que nos tratassem apenas com um regime de facto. De facto, fora, por exemplo, o Governo de João Franco, porque tinha contra si a grande maioria do País. Nós, ao contrário, fizemos desde a primeira hora o Governo da Nação pela Nação quase sem opositores de valia. Não tivemos que nos impor pela ditadura, não! O Governo cumpriu no poder o programa que verdadeiramente não era só republicano, mas nacional, e que não era só de agora, mas que vinha dos tempos iniciais da nossa nacionalidade. Porque esse programa era de emancipação religiosa e outro não foi o da Nação logo durante a primeira dinastia, assinada pelas lutas contra o poder clerical. Era de emancipação económica, e tal foi o da Nação durante a segunda dinastia, em que as lutas se travaram contra o poder da nobreza feudal. E era de emancipação política, pleiteada de 1580 a 1640 contra a tirania estrangeira, e desde 1820 até 5 de Outubro de 1910 contra a opressão absolutista da Monarquia brigantina. E a prova de que nós, os do Governo Provisório, não fizemos ditadura, é que nenhum dos seus membros pensou em pedir e nenhum dos membros da Constituinte pensou em conceder-lhe um bill de indemnidade. A Constituinte deu-nos logo um voto de plena adesão e aprovação à obra governativa, a qual pode e deve ainda ser discutida no seu valor e perfeição técnica, mas não no seu sentido e alcance moral, que ficou desde esse voto solene da Constituinte fora de toda a questão, terminando com ele as nossas responsabilidades políticas perante o País.
- Mas sobre a Constituição, sobre parlamentarismo...
- Lá vamos, meu amigo, lá vamos.


AS TRADIÇÕES PARLAMENTARES
Houve côrtes que elegeram reis e que lhes recusaram obediência - Negar o parlamentarismo é negar o poder do espírito público em Portugal
Há muitos cidadãos no salão de espera que desejam falar com o ministro - este, aquele, mais aqueloutro, informa o contínuo.
- Peça-lhes que esperem mais uns momentos - diz o ministro.
E o contínuo parte.
- É isto, observa-me o sr. dr. Bernardino Machado. A Monarquia deixou pendentes, sem solução, muitos assuntos. Pouco ou nada se importava com o País, nem com os interesses legítimos dos cidadãos, das corporações, etc. Proclama-se a República e deseja.se tudo resolvido, pelo melhor e o mais rapidamente possível, de chofre. Eu compreendo muito bem; mas é que não há forças materiais para tudo! Não basta só a boa vontade do Governo em atender a quaisquer reclamações justas e dignas; é necessário tempo, ocasião...
Mas o ministro, quase sem transicção, prossegue:
- Esse direito republicano e nacional, de que foi depositário o Governo Provisório, é que se trata agora de formular. Quanto melhor o formularmos, na nossa Constituição, tanto mais demonstraremos que o compreendemos. Essa fórmula é antiga como o nosso direito constitucional. É a fórmula parlamentar. Temos côrtes desde os alvores da nossa vida pública. Elas elegem reis em 1315 e 1641. Declaram ao eleger D. João VI, que têm o direito de recusar obediência ao Rei, quando ele se torne tirano e indigno; acusam em 1642 de traidor o secretário de Estado, Lucena, e em 1668 depõem Afonso VI. Com elas, pelo seu engrandecimento, atingimos a nossa grandeza histórica, e quando elas declinam, decai também a Nação. A prova de que somos antigos parlamentares é que um dos grandes mestres de direito público parlamentar, conhecido e lido em todo o mundo, é o sábio português Silvestre Pinheiro Ferreira. Para as côrtes apelamos em 1820 e 1834, e foi pelos progressos do parlamentarismo que chegamos a ter quase o sufrágio universal para a eeleição da Câmara dos Deputados e a introduzir também o elemento electivo na organzição da Câmara dos Pares. Através de muitos erros e incertezas, o período de 1852 a 1885 foi, incontestavelmente, não só de fomento, mas também de tolerância e liberalismo. Basta lembrar as leis tantas vezes citadas, a lei eleitoral de Fontes, a lei administrativa de Sampaio, a lei de imprensa de Barjona de Freitas, leis promulgadas por ministros conservadores, mas reclamadas da oposição pelos partidos mais avançados de então, reformistas, históricos e progressistas - tal era então a intensidade da vida pública entre nós. Para não falar de outros mais recentes, os nomes de Garrett, José Estêvão e Rodrigo da Fonseca, esses três eminentes parlamentares reunidos no mesmo elogio pelo nosso grande Latino Coelho, mostram quanto foi modernamente gloriosa a nossa tribuna parlamentar. E quem esqueceu os oradores republicanos dos últimos tempos, que tanto a dignificaram?
- O Mundo já defendeu essa opinião, que muito folgo ver tão eruditamente desenvolvida e confirmada por V. Ex.ª...
- É a verdade. Bem sei que se objecta com as dissoluções repetidas em dois reinados de D. Luís e D. Carlos; mas que provam elas se não a luta do poder contra o parlamentarismo, que, ainda mesmo viciado pelo regime, o amedrontava e não era nunca, afinal, um morto? Negar o parlamentarismo é negar o poder do espírito público em Portugal, atacando não só a Monarquia, que o pretendeu sufocar, mas o próprio País, que se não deixou nunca esmagar pro ela; é sustentar a tese de João Franco, desenvolvida no célebre decreto da ditadura administrativa relatado pelo ministro Martins de Carvalho, que para a fundamentar não duvidou asseverar que em Portugal só ditatorialmente se tinha governado e se podia governar. Se nunca tivéssemos tido vida cívica, se no-la houvesse destruído a Monarquia, como é que sem nenhuma preparação eramos capazes de exercitar os nossos direitos livremente, dentro do regime republicano? Não! A República é o corlário legítimo e necessário de todo o nosso passado de povo livre, muitas vezes oprimido, mas incessantemente redivivo pelo esforço indomável da nossa hombridade patriótica. Tais são as nossas tradições constitucionais.


OS PONTOS CAPITAIS
Presidência, duas câmaras, representação associativa e corporativa - Ministros no Parlamento! - A união dos republicanos deu-nos a vitória, e só ela pode consolidá-la
E pusemos claramente a questão:
- Na opinião de V. Ex.ª, devemos assegurar e manter o regime parlamentar...
- Incontestavelmente. E como organizá-lo? Quantos órgãos deve ter? Um, dois ou mais? Depende isso da própria organização social. Dantes, quando a Nação se divida em três Estados - clero, nobreza e povo - havia rigorosamente três câmaras, porque cada braço das côrtes discutia e votava sobre si; hoje, não há já castas, divisões profundas da sociedade, mas há duas formas de sociabilidade: uma, associativa, a das associações de classe; outra, corporativa, que é a dos municípios, paróquias, distritos e províncias. Daí, duas câmaras: a Câmara dos Deputados, que cada vez mais tende a ser o coroamento da vida corporativa, representa das forças vivas da Nação, já entre si equilibradas e harmónicas. Como elegê-las? A Câmara dos Deputados deve ser eleita pelo sufrágio universal, cada vez mais e melhor disciplinada pela organização associativa, e o Senado deve ser eleito por todas as nossas corporações, desde a paróquia até à província, senão mesmo até também pela Câmara dos Deputados, como sucede em França. Por isso, não convém dar à Câmara Alta exlusivamente o nome de Conselho de Municípios.
- E quanto ao Presidente e sua eleição?
- O Parlamento é o representante da soberania da Nação e, como tal, tem todos os poderes e todos pode reassumir. Felismente, ao que parece, ninguém, tentado pela prosperidade da grande República da América do Norte, pretende fazer ressurgir, entre nós, as lutas entre o Chefe do Estado e o Parlamento, substituindo a um Rei dinástico de origem parlamentar um presidente eleito fora do Parlamento, com uma força igual à dele, podendo, portanto, defrontá-lo e vencê-lo. Chama-se a esse regime presidencial, como sabe, porque predomina nele o presidente sobre o parlamento. É o regime republicano que mais se presta aos golpes de Estado e às revoluções. O presidente eleito pelo sufrágio directo, com uma câmara só, deu em França o segundo império e Sédan. Sempre é melhor um chefe eleito do que um Rei hereditário, não há dúvida; mas é ainda uma forma jurídica de constituição inferior. Basta à direcção do Governo um Presidente do Conselho ou é precisa uma autoridade que presida à alternação dos partidos no poder e que dê continuidade à política externa da Nação? À Suíça basta um presidente do conselho federal, mas esta é uma das formas anárquicas do Governo que provam um alto grau de educação cívica nos cidadãos daquela Nação. Assim como não precisam de autoridade que presida aos movimentos dos partidos, assim também chegam a dispensá-la para a elaboração das leis, votando-as directamente por meio do direito de iniciativa e do direito de referendum. Lá mesmo, porém, algumas vozes de homens públicos notáveis têm reclamado para o presidente da conferederação a magistratura do Chefe do Estado. E, na Suíça, a vida pública tão intensa administrativamente, não tyem quase nunca grande intensidade política. Entre nós é, sobretudo, neste momento, ainda muito ardente a nossa vida política. Podemos e devemos contar com a fácil disciplina social do nosso povo; mas a dos dirigentes é bem mais difícil e penosa. Em parte alguma se dá uma separação profunda entre os poderes, nem nos Estados Unidos, onde o Presidente da República exercita até o veto e onde ao Parlamento competem as mais altas nomeações. Os ministros, que são os mais cotados representantes da maioria parlamentar, adquirem pelo seu trato directo dos negócios a prerrogativa no exercício do direito da inciativa das leis e os deputados e senadores não legislam só, fiscalizam a execução das leis, e actos legislativos seus são ao mesmo tempo executivos, como a votação dos tratados internacionais, e das chamadas leis constitucionais, isto é, a lei de meios e a da fixação das forças de terra e mar.
- E a respeito do direito da dissolução, é contra ou a favor?
- Sou contra, por mais ponderosos que sejam os argumentos com que esse direito foi defendido. Para mim, o poder moderador está na opinião pública, que é indispensável que as maiorias e opsições agitem incessantemente. E, por isso mesmo, eu quero os ministros no Parlamento, no seu posto discutindo, conduzindo a opinião. Não aceito, sequer, a sanção e o veto do Chefe do Estado. Compete-lhe a ele, unicamente, a promulgação das leis. Quanto à sua reeleição, tenho sustentado sempre que o Parlamento não deve restringir os seus poderes, impossibilitando-se de votar em quem quiser, que ese alguém tenha sido ou não ainda Chefe do Estado. Penso mesmo não ser sem perigo a clásula da não reeleição, porque é quase um convite ao Chefe do Estado para se não importar com a opinião, alimentando-lhe ou criando-lhe, precisamente, as tendências ditatoriais que se pretendiam coarctar.

OS VENCIMENTOS
- V. Ex.ª tem tratado, nesta nossa palestra, de todos os pontos capitais da Constituição ou de uma Constituição. Permita-me que indague de V. Ex.ª o que pensa a respeito de duas questões análogas, e que se tem ventilado - a dotação do Presidente e o subsídio aos deputados...
- Penso que, na verdade precisamos de ser uma economia rigorosa, porque todos temos responsabilidades graves perante o espectáculo da miséria em que se encontram as classes trabalhadoras entre nós, miséria que urge remediar. Por isso, os vencimentos dos representantes da Nação, como os de todos os seus funcionários, devem ser modestos, mas faça-se também por que não sejam insuficientes, para que todos possam democraticamente desempenhar os cargos públicos, quaisquer que sejam os seusmeios pessoais de fortuna. Sobre este, como sobre todos os pontos capitais, creio não haver sensíveis divergências na maioria da Constituinte. E oxalá ela efectivamente vote uma Constituição que seja quanto possível a expressão unânima das aspirações do partido Republicano e da Nação. Presicamos de fundar solidamente a autoridade republicana, para que ela possa assegurar eficazmente todas as liberdades públicas. A autoridade deixou de ser o inimigo, para ser o amigo do povo e, como tal, deve vir a ser considerada e respeitada. Organizem-se os poderes públicos, traçando-lhes as suas órbitas de acção, mas com toda a confiança neles, dadno-lhes forças e prestígio para afzerem uma política que tem de ser de coesão e pacificação nacional, mas que ambém tem de ser de uma enérgica e inquebrantável defesa da República, seja contra quem for que a afronte ou ataque, tentando romper os nossos laços cívicos, separando-nos uns dos outros, aqui e no ultramar, numa palavra, pondo em risco a unidade e o destino histórico da nossa nacionalidade. O grande mal do país proveio das divisões e dissolução dos partidos e governos monárquicos. A sua regeneração e engrandecimento não há-de provir da fraternal união republicana, tornando-se absolutamente necessário que seja tão estreita e disciplinada no Governo, quanto o foi na oposição. Ela nos deu a vitória, só ela nos pode consolidar para sempre!








Sem comentários: